UMA CIDADE RISCADA DO MAPA
- vivianbarbour
- 12 de mar. de 2023
- 6 min de leitura
Preservação do patrimônio cultural e de áreas históricas não é problema dos órgãos de preservação. É problema complexo, que entrelaça cultura com planejamento, com moradia, com economia e com desenvolvimento social
Sim, é isso mesmo. Imagine você pegar porções de uma cidade e simplesmente dizer: finja que esse lugar não existe, não use ou frequente esse lugar, não passe por aqui. Essa é mais ou menos a história de Salvador por trás de um mapa distribuído para turistas com pontos de interesse e do’s and dont’s em relação à cidade.
Estive em Salvador em meados de 2022 para participar do Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico com o debate que há anos venho me envolvendo em São Paulo, sobre a relação entre patrimônio cultural e tecido urbano. Como o patrimônio pode estar à serviço da cidade e das pessoas? Como construir políticas de preservação que dialogam com o planejamento urbano? Quais soluções o direito urbanístico pode oferecer para esses impasses?
Pois bem. Logo no primeiro dia da minha estadia em uma pousada muito próxima do Pelourinho, recebi da recepção o fatídico mapa. Focado no centro histórico de Salvador, ele continha indicações tipicamente direcionadas a turistas: igrejas, praças, marcos históricos. Mas havia algo mais nesse mapa que logo me chamou a atenção. Quatro áreas delimitadas com hachuras e os dizeres “área em recuperação, não utilizar”, “não utilizar esta área” e “não utilizar à noite”.
Sem maiores explicações, essas orientações-proibições deitavam tranquilamente no mapa, que era distribuído e consumido pelas pessoas que queriam conhecer Salvador. No entanto, não me parecia nem um pouco “natural” que simplesmente aceitássemos que pelo menos um terço da área ali indicada estivesse coberta com restrições de uso.
Todo mapa é elaborado por alguém, e traz consigo juízos de valor. Vale sempre lembrar Ulpiano Bezerra de Meneses, que nos provoca dizendo que se valor é sempre um exercício de atribuição, é de se pensar quem o atribui. Questionada a respeito daquela peculiaridade, a pessoa que distribuía o mapa comentou que o centro antigo de Salvador estava sendo restaurado pouco a pouco e que aquelas áreas ainda não haviam sido reformadas. Por conta disso, os imóveis apresentavam risco de queda. “Não é que a senhora não possa andar ali, mas não é recomendado.”
Depois de rapidamente imaginar balaústres e placas de argamassa caindo na minha cabeça – uma cena apocalíptica que me pareceu pouco razoável – fiquei ainda mais intrigada com a situação que se apresentava. No mínimo, não é possível que tenhamos naturalizado a interdição de manchas consideráveis do tecido urbano à espera de sua recuperação. Numa área central, a mais antiga, a com maior concentração de investimentos públicos, aquela carregada de memórias, histórias e narrativas. À espera de quem? À espera do quê, exatamente? A interdição tratava porções do território como áreas passíveis de serem controladas, limite, entrada, saída, inauguração, abertura – todas noções muito distantes do cotidiano das cidades.
A recuperação do Pelourinho, sabemos, é uma experiência malsucedida de reabilitação do centro histórico. Iniciada em meados dos anos 1980, ela teve uma participação interessante de Lina Bo Bardi, que propôs projetos de restauro para lugares como Casa de Olodum e Ladeira da Misericórdia, em que a premissa era a manutenção do uso residencial para a população de baixa renda ali residente.
No entanto, mudanças de gestão no governo do estado da Bahia fizeram com que, em 1991, as políticas de preservação do centro histórico de Salvador tomassem uma guinada rumo à preservação como mercadoria, como parte de um movimento maior que o campo do patrimônio vinha experimentando naquele momento. Restaurar para o consumo cultural. E assim, o projeto de recuperação das casas e sobrados do Pelourinho se transformou, literalmente, num projeto de composição de um shopping a céu aberto.
A arquiteta e pesquisadora Márcia Sant’Anna tem uma pesquisa exemplar a respeito desse processo de recuperação do centro de Salvador. Por ora, basta dizer que a construção de um templo de consumo vinha do desejo de colocar a cidade no páreo nacional e global de disputa das cidades por capital e investimento. A recuperação do Pelourinho poderia ser uma grande vitrine nesse sentido.
Como mostra Sant’Anna, no entanto, o projeto não tinha sustentabilidade financeira. Em resumo, num movimento de marketing governamental, o governo estadual entregou tudo, sem contrabalancear com responsabilidades do outro lado. O particular aproveitava todos os incentivos fiscais e urbanísticos para instalar seus negócios sem precisar dar qualquer contrapartida. Toda a recuperação material e organização da ambiência ficava a cargo do poder público. Investimentos a fundo perdido que prometiam um retorno no médio prazo “para toda a cidade”. Mas esse retorno não veio.
CONVERSANDO COM PESSOAS QUE CONVIVEM NA REGIÃO RISCADA DO MAPA FICOU EVIDENTE UM MECANISMO CRUEL DE ESVAZIAMENTO DESSES ESPAÇOS: INCUTE-SE NO SETOR DO TURISMO ESSA HIERARQUIA DE LUGARES
Em primeiro lugar, não se constituiu o chamariz esperado para que a iniciativa privada migrasse e investisse no centro. Ela se apoiou inteiramente nos investimentos públicos, sem se comprometer com aportes duradouros e de longo prazo. Também ficou evidente que houve uma calibragem equivocada por parte do governo estadual. Toda a transformação no Pelourinho foi feita mirando uma fatia de frequentadores de mais alta renda – sejam turistas, sejam moradores de Salvador com maiores recursos. Mas o que estudos deixaram em evidência é que a maior parte dos frequentadores do centro era de pessoas que moravam no próprio centro.
Claro, se não havia um olhar sensível para a moradia, o programa já nasceu com vícios em sua origem. Processos de expulsões e um olhar míope sobre o que faz de um lugar um espaço com vivacidade resultaram num movimento de esvaziamento do uso habitacional do centro. Assim, além da insustentabilidade financeira, ficou obviamente escancarada a questão da moradia: para onde iriam as pessoas removidas em função das requalificações? Como os projetos poderiam incluir habitação para população de baixa renda?
O processo de recuperação do centro de Salvador foi feito em etapas. As seis primeiras aconteceram entre 1992 e 1997 com o foco absoluto na reciclagem do tecido para consumo. O fracasso do projeto levou a uma desaceleração das intervenções. A sétima etapa coincidiu com a implementação do Programa Monumenta, idealizado pelo Iphan (Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional) com articulação e financiamento do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). O investimento a fundo perdido já não era uma opção, e a sustentabilidade social do projeto também passou a ser central: de modo inovador em relação às fases anteriores, a 7ª etapa foi concebida tendo a promoção do uso habitacional como eixo gravitacional do sucesso do projeto.
Em concomitância ao Monumenta, o início dos anos 2000 é marcado por uma profusão de projetos que buscavam endereçar a preservação em diálogo com a questão da moradia no centro de Salvador. Programa de Revitalização de Centros Históricos, vinculado à Caixa Econômica Federal, que em Salvador foi chamado de Rememorar I e II; Programa de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais, do Ministério das Cidades; e Plano de Reabilitação Participativa do Centro Antigo de Salvador, com a criação do Escritório de Referência do Centro Antigo de Salvador.
Do ponto de vista do paradigma de preservação, a década de 2000 é rica em provocar uma reflexão e um ajuste de rota em que é difícil de se admitir qualquer caminho de preservação que ignore a moradia. Do ponto de vista pragmático, no entanto, o crescimento do uso habitacional do centro histórico de Salvador ficou muito aquém do desejado e programado. Novamente, a falta de uma modelagem financeira dificultou a alavancagem do projeto. Como resultado, as últimas décadas têm observado ações descoordenadas do poder público e iniciativa privada, somadas à dificuldade de articulação institucional entre as diversas instâncias públicas envolvidas.
Agora, voltando ao mapa distribuído atualmente na região do Pelourinho, o que vemos é que as áreas riscadas coincidem, em grande medida, com aquelas reservadas à intervenção da 7ª etapa. De início, chama a atenção que é justamente no momento da inserção do debate da moradia que o programa de intervenções trava. Quais os arranjos financeiros e institucionais que nos faltam para ter sucesso nessa empreitada?
Mas não é só essa a questão que emerge. Além da problemática do congelamento de projetos, o que leva toda uma área a ficar na incerteza sobre seus rumos, a situação tem um grau maior de perversidade. Pois a reincidência de uma narrativa de que aqueles lugares não são seguros faz com que cada vez menos pessoas transitem ali. Pouco movimento provoca maior insegurança o que, vejam só, diminui o movimento e desincentiva os usos.
Conversando com pessoas que convivem na região riscada do mapa – algumas delas marcadas por disputas por acesso à moradia, com ocupações de prédios tombados sendo questionadas pelos órgãos de preservação do patrimônio – ficou evidente um mecanismo cruel de esvaziamento desses espaços: incute-se no setor do turismo essa hierarquia de lugares – aqui pode, aqui não pode. Isso enfraquece o movimento em regiões que, até então, sobreviviam de um sensível microecossistema em que os moradores dos prédios históricos vendiam comidas e bebidas nas portas de suas casas para os passantes. Sem turistas, essas pessoas têm cada vez menos recursos, a manutenção já parca dos edifícios fica ainda mais complicada, e a vida naqueles locais fica cada vez mais insustentável financeiramente. Muitos abandonam os imóveis, o que só reforça o ciclo do despovoamento daquelas regiões.
Esse mecanismo perverso evidencia o que já é cristalino: preservação do patrimônio cultural e de áreas históricas não é problema dos órgãos de preservação. É problema complexo, que entrelaça cultura com planejamento, com moradia, com economia e com desenvolvimento social. Dos muitos investimentos financeiros, políticos e intelectuais colocados à mesa para endereçar os centros antigos de Salvador espalhados Brasil afora, o que podemos fazer para que não tomemos o caminho mais simples de simplesmente riscar o problema do mapa?!
PUBLICADO NO NEXO JORNAL
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2023/03/12/Uma-cidade-riscada-do-mapa



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