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SEIS IDEIAS PARA LEVAR O PATRIMÔNIO CULTURAL A SÉRIO

  • Foto do escritor: vivianbarbour
    vivianbarbour
  • 12 de abr.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 14 de ago.

A partir de anos de pesquisa e atuação no tema, ouso elaborar uma lista de questões que precisamos abordar urgentemente, ao invés de ficarmos aguardando a próxima tragédia para nos lastimarmos


Tragédias como a queda do forro da Igreja de São Francisco, em Salvador, nos levam a refletir: como chegamos a esse ponto?! Minha provocação, então, é: precisamos levar o patrimônio cultural a sério. E como fazer isso? A partir de anos de pesquisa e atuação no tema, ouso elaborar uma lista — não exaustiva — de questões que precisamos abordar urgentemente, ao invés de ficarmos aguardando a próxima tragédia para nos lastimarmos:


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Assumir que todo patrimônio cultural é um ato político


A primeira questão, fundamental a todas as demais, é a necessidade de assumirmos que o campo do patrimônio é um campo em disputa. Não existem consensos, não existem valores imanentes nem argumentos puramente técnicos. Patrimônio é disputa por narrativa, e narrativa é poder – como bem aponta a Association of Critical Heritage Studies, organização que reúne especialistas, pesquisadores e detentores do mundo todo para pensar e praticar o patrimônio a partir de uma perspectiva crítica.


Reconhecer o campo subjetivo do patrimônio é caminho essencial para dar transparência à sua construção e, logo, legitimidade à sua preservação e permanência. Mais do que reconhecer bens culturais, é preciso que eles sejam parte do cotidiano e do campo simbólico das pessoas que com eles se relacionam, para que o trabalho de cuidar desses bens seja coletivo e difuso – aqui cabe dizer que, ainda que patrimônio seja disputa, ele é matéria de interesse público e por todos deve ser zelado, do poder público à sociedade civil. Isso me leva ao segundo ponto.


Distribuir as responsabilidades


O tombamento, sabemos, não implica mudança na titularidade do bem. Logo, seu proprietário segue sendo responsável por sua preservação. Mas sabemos também – e dissemos logo acima – que patrimônio cultural é matéria de interesse público. Ou seja, interessa a toda a coletividade a preservação daquele bem, porque, de uma forma ou outra, no decorrer do processo de disputa para sua construção, ele condensa determinada memória ou arcabouço simbólico que diz respeito a um grupo ou à sociedade.


Não é mais admissível que a responsabilidade pela preservação siga caindo integralmente sobre o proprietário dos bens culturais edificados. Aqui não queremos eximir ninguém de suas responsabilidades por eventual negligência com a conservação de seus imóveis. O que é preciso, e de forma urgente, é desmanchar o entendimento de que a responsabilidade do Estado para com o patrimônio é apenas teórica e residual. Não, não é. O decreto-lei nº 25/37 diz que não, também a Constituição de 1988. Depois deles, há uma miríade de leis e ferramentas desenhadas para apoiar a preservação com políticas públicas. E elas funcionam?


Fazer valer as instituições, as leis e os instrumentos


Reconhecida a responsabilidade solidária do Estado, urge primeiro fortalecer a atuação das instituições públicas que atuam no campo do patrimônio: é preciso renovar quadros, formar continuamente os antigos, trabalhar com planos de carreira e aumentos salariais, enfim, é preciso reconhecer que a política de preservação deve ser uma política de Estado.

Além disso, é preciso que leis e instrumentos urbanísticos voltados para a preservação saiam do papel e sejam efetivos. A política pública de maior destaque que temos hoje é a preservação via Lei Rouanet. Mas essa ferramenta está mais voltada para os bens monumentais e/ou excepcionais. Ela não endereça a demanda por preservação da maior parte dos bens protegidos, que conforma o chamado Patrimônio Cultural Urbano – para apenas citarmos, de passagem, Ulpiano Bezerra de Meneses e já dizer que, se você se interessa por patrimônio, você precisa conhecer sua contribuição.


Vamos pegar, por exemplo, a transferência do direito de construir, que tem como uma de suas finalidades a preservação do patrimônio cultural. Cidades como São Paulo patinam vergonhosamente em tornar sua aplicação azeitada e acessível. Ainda é uma caixa de pandora, porque há tanto desentendimento em relação ao instrumento que sua regulamentação é um verdadeiro Frankenstein. Parte da dificuldade de implementar políticas e instrumentos vem, aliás, de um problema maior: a ausência de diálogo permanente entre os órgãos de patrimônio e outros setores do poder público. Patrimônio é multidisciplinar. Vamos lá.


Cuidar do patrimônio de forma intersetorial


Não é só à cultura que diz respeito o patrimônio, muito menos apenas aos órgãos de preservação. Patrimônio fala também sobre política urbana, sobre direito à cidade. A turma da habitação precisa falar sobre patrimônio. Também a de desenvolvimento econômico. Patrimônio tem tudo a ver com trabalho. Tem a ver com meio ambiente. No caminho do fortalecimento institucional, é preciso tornar basal a intersetorialidade do funcionamento dessas políticas públicas de preservação. Tivemos algumas experiências pioneiras nesse sentido em São Paulo – como o Concurso Nacional de Ideias para Renovação Urbana e Preservação do Bixiga (1989-91), que infelizmente acabou sendo desmantelado aos poucos.


Quem estuda criticamente o patrimônio cultural está cansado de repetir que sua preservação vem pelo uso. E a viabilidade desse uso está absolutamente ancorada na possibilidade de diálogo entre diversas frentes de políticas públicas. Não deve importar apenas um olhar “técnico” sobre a materialidade e a forma. Porque, se não forem pensadas de forma integrada, elas por si estarão em risco.


Abandonar o fetichismo da forma


Um diálogo intersetorial permitirá que o patrimônio seja de fato analisado e preservado tendo em vista as demandas e apropriações do presente. Memória, sabemos (ou deveríamos saber), é um constructo do presente. Está sendo o tempo todo reorganizada, desconstruída e remontada, num processo dialético. E, muitas vezes, ela tem por suporte material o patrimônio cultural. Assim, é preciso reconhecer que a preservação da forma pela forma, ancorada na ideia de “estado original” versus “elementos espúrios”, sem evidências históricas e documentais e sem aderência nas apropriações do presente, é mero fetiche – e vai no sentido contrário da finalística da própria ideia de preservação. Essa posição está há muito cristalizada na Carta de Veneza, de 1964, documento basilar para quem atua com preservação. Patrimônio alijado das demandas e apropriações do presente está fadado ao perecimento.


Respeitar o processo


Por fim, é preciso sempre lembrar que o patrimônio cultural é fruto de um reconhecimento formal, por parte do Estado, de que algo tem importância para determinada coletividade. Ou seja, toda a sua construção se desenrola dentro de um processo administrativo. Isso pressupõe que haja prévio estabelecimento das regras do jogo e sejam garantidos o devido processo e o contraditório. Apenas assim, é possível honrar princípios tão caros à administração pública, como o da legalidade, da impessoalidade, da publicidade, da motivação e da eficiência.


Quantos não são os processos, nos órgãos de preservação Brasil afora, em que vemos um vaivém casuístico de expedientes? Isso gera processos longuíssimos, sem segurança jurídica, que colocam em xeque a própria credibilidade desses mesmos órgãos. Não dá mais para reinventarmos a regra do jogo no meio do jogo, o tempo todo. Corpos técnicos e conselhos precisam zelar pela correta observação dos atos administrativos desdobrados no tempo. E precisam fazê-lo observando a duração razoável do processo, que é, afinal, um direito fundamental previsto em nossa Constituição.


Como bem denota a queda do forro da Igreja de São Francisco – mas não só ela, também o incêndio do Museu Nacional ou o princípio de incêndio do Copan, apenas para ficar com alguns exemplos –, estamos em tempos de tratar das urgências do patrimônio. Haveria outras ideias para ele ser levado a sério? Com certeza. Muitas. Esta contribuição busca ir direto ao ponto naquilo que entendo inadiável. Fica o convite para construirmos a seriedade do patrimônio também no longo prazo. 




PUBLICADO NO NEXO JORNAL

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